Abuso Espiritual nos Cuidados Paliativos

*Imagem gerada por inteligência artificial com DALL·E – OpenAI que ilustra o contraste entre o abuso e o acolhimento espiritual. Curadoria e instrução de Luis Saporetti.



“O barulho das religiões só perde para o silêncio da espiritualidade”.

Balorixá Carlos Buby


A espiritualidade tem papel essencial nos cuidados paliativos, ajudando pacientes a manterem sentido, conexão e dignidade mesmo diante da morte. No entanto, essa mesma dimensão — tão sensível e subjetiva — pode se tornar uma via de sofrimento quando é imposta, manipulada ou desrespeitada. É disso que trata o abuso espiritual: do uso indevido da espiritualidade como instrumento de poder, opressão ou exclusão.


Espiritualidade não é o mesmo que religião

Embora se cruzem em muitos momentos, espiritualidade e religiosidade são conceitos distintos. Espiritualidade diz respeito à busca pessoal por sentido e conexão — com a vida, com o sagrado, com o outro, com o universo ou consigo mesmo. Já a religiosidade se expressa por meio de doutrinas, rituais e tradições organizadas. Ambas são válidas e importantes, mas precisam ser respeitadas conforme a vivência única de cada indivíduo.

Nos cuidados paliativos, onde pacientes enfrentam a possibilidade real da morte, essas questões emergem com intensidade. É por isso que a espiritualidade tem sido considerada por muitos como um "sexto sinal vital": algo que deve ser acolhido com o mesmo cuidado que damos à dor física ou à angústia emocional.


Somos seres de conexão

Uma forma útil de pensar as expressões da espiritualidade é por meio do acrônimo S.O.M.U.S. :

Si mesmo

Outro

Momento presente

Universo

Sagrado

Essas dimensões representam diferentes formas pelas quais encontramos sentido na vida. Todas elas podem ser abaladas diante da finitude — e todas precisam ser respeitadas.


Quando a fé se torna fardo

O abuso espiritual acontece quando a fé, ao invés de acolher, oprime. Isso pode ocorrer por meio de imposições doutrinárias, culpabilização, negação da escuta ou recusa em permitir que o outro viva sua própria espiritualidade (ou sua não espiritualidade). O conceito foi definido pelo capelão Boyd C. Purcell como a indução ao medo de punição divina por não se viver de forma "correta" aos olhos de Deus. Frases como “Você precisa aceitar a vontade de Deus” ou “Falta fé para se curar” podem parecer inofensivas, mas em contextos de vulnerabilidade profunda — como o fim da vida — podem gerar dor e desamparo.


A origem dessas feridas

Nossa espiritualidade é moldada por nossa infância, cultura, história familiar e pelas narrativas que ouvimos sobre o sagrado. Para manter o vínculo com figuras importantes, muitas vezes silenciamos dúvidas, medos e conflitos. Aprendemos que ser aceito significa concordar — até mesmo com imagens de divindades autoritárias ou exigentes. Essas marcas reaparecem quando nos sentimos frágeis, e podem ser facilmente manipuladas.


Quem está mais vulnerável?

Crianças, idosos, pessoas doentes ou em luto, indivíduos em sofrimento psíquico ou hospitalizados estão mais expostos a esse tipo de abuso. São também mais suscetíveis à imposição de crenças alheias, à exclusão de seus próprios rituais e à vergonha de expressar sentimentos "não espirituais" como medo, raiva ou desesperança.


A intolerância e o proselitismo disfarçado de cuidado

Impedir um ritual, negar acesso a líderes religiosos, recusar práticas espirituais diferentes sob o pretexto da ordem institucional ou familiar — tudo isso pode configurar intolerância religiosa. Da mesma forma, tentar converter pacientes em momentos de fragilidade, mesmo "com boas intenções", é um tipo de proselitismo que precisa ser revisto com urgência.


Quando a espiritualidade vira fuga

John Welwood cunhou o termo "spiritual bypass" para se referir ao uso da espiritualidade como forma de evitar o contato com sentimentos difíceis, assim como evitar conflitos. Isso acontece quando substituímos a escuta por frases como “Pense positivo”, “Tenha fé” ou “Ele está em um lugar melhor”, invalidando a dor legítima do outro.

Ao fazer isso, não apenas evitamos contato com o sofrimento, mas também perpetuamos a ideia de que certas emoções não são "espirituais" o suficiente, aprofundando o isolamento emocional.


O que pode acontecer?

As consequências do abuso espiritual são reais:

Depressão e ansiedade

Culpa, vergonha, crise de fé

Isolamento

Abandono de tratamentos em nome de promessas de cura

Perda de confiança em vínculos espirituais futuros


E o que podemos fazer?

Cuidar da espiritualidade é escutar, acolher e respeitar. Significa reconhecer que cada pessoa tem sua forma de se relacionar com o invisível — e que nenhuma fé é superior à experiência humana vivida naquele momento.

Profissionais de saúde devem estar atentos aos sinais de sofrimento espiritual e capacitados para atuar com compaixão, evitando frases prontas, julgamentos ou invasões. Em situações graves, há canais legais como o Disque 100, que acolhem denúncias de intolerância e violação de direitos.



Para concluir

A espiritualidade, quando bem acolhida, alivia o sofrimento, fortalece vínculos e ajuda a encontrar sentido mesmo diante da morte. Mas ela só cumpre esse papel quando vivida com liberdade, não com imposição.

Evitar o abuso espiritual é, antes de tudo, um ato de respeito pela alma do outro.



Para ler mais:

https://www.inspiritus.com.br/somus-formas-de-conexao


https://www.inspiritus.com.br/spiritual-bypass

https://www.inspiritus.com.br/abuso-e-violencia-espiritual

Saporetti, L.A. (2021). Espiritualidade nos cuidados paliativos. In R. Castilho (Org.), Manual de Cuidados Paliativos da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (3ª ed.). Atheneu.

https://www.atheneu.com.br/manual-de-cuidados-paliativos-ancp-3-edicao

Saporetti, L.A. (2024). Abuso espiritual nos cuidados paliativos. In L. Dadalto & Ú. Guirro (Orgs.), Bioética e cuidados paliativos (Vol. 2). https://a.co/d/aXMHDOi

Purcell BC. Spiritual abuse. American Journal of Hospice and Palliative Medicine®. 1998;15(4):227-231. doi:10.1177/104990919801500409

NOGUEIRA, Sidnei. Intolerância Religiosa. 2020 https://a.co/d/26ffacA

MASTERS, Robert Augustus. Spiritual Bypassing: When Spirituality Disconnects Us from What Really Matters. 2010 https://a.co/d/cJPHF5J

SHAWN, Nelson. Spiritual abuse: unspoken crisis. 2015 https://a.co/d/bezugy8



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