Spiritual Bypass

Pode a busca espiritual trazer consequências nocivas?

 

Poderia a espiritualidade ter efeitos nocivos à psique? Essa pergunta me perseguiu por muito tempo. Muito precocemente em minha jornada, pude perceber que poderíamos usar a dinâmica psicológica das religiões para fins de controle e poder. Mas sentia a espiritualidade como local seguro. No entanto, certos posicionamentos me incomodavam: a negação do eu, a busca por estados que anestesiam as vivências sofridas, a negação dos aspectos sombrios do ser humano, o consumismo de autoajuda, gurus e mestres abusivos, escândalos sexuais, a proliferação de crenças espiritualistas, abordagens positivistas, etc.

 

Poderia então a espiritualidade ter sua sombra? Seus reveses?

 

O bypass espiritual (atalho espiritual) está na base de diversos comportamentos e crenças “espirituais”. Ele se apoia em algumas necessidades psicológicas básicas do ser humano. Temos muita dificuldade de aceitar que somos frágeis, vulneráveis, falhos e imperfeitos. Temos dificuldade de lidar com emoções e sentimentos como parte da vida. Dificuldade de entender que a Verdade está além de nossa possibilidade. E, por fim, temos medo de sofrer e morrer. Conjuntamente, vivemos hoje uma sociedade hedonista e narcisista que quer soluções rápidas para problemas complexos.

 

Diante de tudo isso, torna-se erroneamente mais fácil encontrar atalhos.

 

O termo spiritual bypass (atalho espiritual) foi primeiramente descrito em 1984 por John Welwood e ocorre com muito mais frequência do que eu seria capaz de imaginar. Doutrinas religiosas e espirituais incitam e legitimam o atalho espiritual. O atalho espiritual acontece toda vez que, baseado em valores e crenças espirituais, deixamos de fazer contato com a dor, com nossas necessidades e demandas psicológicas, para saltar diretamente para a perfeição. A ideia de uma perfeição espiritual exclui a possibilidade do imperfeito. Todo atalho espiritual nos distancia, então, do verdadeiro objetivo da busca espiritual: a totalidade, o Self. Não há atalhos na vida, não há atalhos para a jornada espiritual: “Decifra-me ou te devoro!” dizia a esfinge de Tebas, um monstro alado com corpo de mulher e leão. Que imagem fantástica de nós mesmos: meio homem e meio animal.

 

No campo instintivo, como lidar com o corpo? Com a agressividade? O libido? Pode a espiritualidade conviver com a fome, o desejo sexual e a violência? O leão da esfinge é faminto. Por isso, tantos escândalos sexuais entre mestres, gurus e religiosos. Por isso, tanta intolerância religiosa. No atalho espiritual, aspectos cognitivos são priorizados em relação às necessidades do corpo. Vivemos estados de êxtase, de comunhão com o universo ou com Deus e, rapidamente, somos subjugados pelos impulsos do corpo, sua pulsão e seus instintos. O enigma não foi decifrado e a esfinge devora o homem.

 

No campo emocional, o atalho acontece evitando o contato com as “emoções e sentimentos negativos” como se tais estados maculassem o discípulo. Somos seres de conexão, seres de relação, nossas emoções e sentimentos nos conectam com o mundo e as pessoas. Não existem emoções ruins. Elas apenas indicam que algo está acontecendo. O que faço com elas é que definirá se são boas ou ruins, e sabemos que não olhar para elas é muito ruim. O medo, por exemplo, indica uma ameaça real, potencial, externa ou interna. O medo nos deixa gelados, a barriga aperta, o sistema nervoso entra em alerta, pronto para uma explosão energética de luta ou fuga. Imagine uma lebre ignorando seu medo na floresta. Parece ridículo, né?... O que faço com meu medo? Com a preocupação, sua filha primogênita? Ando fervoroso sobre as águas? Estaria a bíblia incitando um bypass? Não, não percebo assim. Mas as interpretações dela incitam atalho. Nas palavras de Joseph Campbell “toda religião é uma mitologia mal compreendia.” Jesus, no evento citado, acalma a tempestade. Você já teve uma tempestade dentro de você? Eu já... Pedro não caminha sobre as águas pois tem medo dela, "tem pouca fé”. Pedro precisa lidar com a tempestade como Jesus fez, antes de poder andar sobre as águas. O mar representa nosso mundo emocional, nossas tempestades e maremotos. É preciso acalmar a tempestade para andar sobre as águas. A ênfase na fé cega incita o bypass.

E a raiva? Ela nos prepara para impedir uma invasão, para expulsar invasores, para lutar. O peito enche, o rosto fica vermelho, os músculos retesam, as pupilas dilatam, a pressão e o pulso sobem. Imagine-se sem ela na hora de se defender ou a seu filho de uma ameaça real? Quem são os vendilhões do templo? Talvez aquele monte de tralha mental que precisa ser expulsa para que possamos realmente encontrar Deus dentro de nós.

A tristeza por sua vez indica a perda de algo ou de alguém. Indica que estamos feridos e, quando estamos feridos, precisamos ficar parados por um tempo até recuperarmos nossas forças. Só a tristeza nos conduz às profundezas de nossa alma. Sem a tristeza, talvez as mais belas obras não teriam sido escritas ou compostas. No atalho espiritual, o indivíduo nega sua emoção/sentimento em função de sua crença espiritual, pois ela macula sua natureza e, assim, deixa de lidar com os problemas que as mesmas sinalizam.

 

Quando não assimilamos esses aspectos emocionais e instintivos, eles se tornam sombrios, se escondem, se aprofundam, vão para o submundo da mente. De repente, fico furioso, violento, sucumbo à depressão, sou intolerante, abusivo, caio no vício daquilo que tento afastar.

 

O excesso de tolerância é outra forma de atalho espiritual. Percebo frequentemente um discurso de tolerância recoberto por soberba de elevação espiritual e, às vezes, medo do confronto. Armadilhas que a mente pode criar. Como dizia Schopenhauer, "A razão é escreva atormentada da vontade.” Assim, visto-me de tolerância quando tenho medo de ser quem sou ou enfrentar os conflitos que me são impostos. Mais interessante ainda é dizer que “o outro não compreende o que eu compreendo” e, assim, precisamos ser tolerantes... quanta soberba.

 

Sim, infelizmente, a jornada espiritual pode ser nociva! Nociva se aceitarmos os atalhos que nos colocamos, ou colocam no caminho. Quando aceitamos os atalhos, deixamos para trás partes essenciais do nosso ser. O processo deve ser lento, progressivo e cuidadoso. A lagarta tem seu tempo no casulo para se tornar borboleta e voar. Facilitar a saída do casulo, cortando-o no sofrido momento do nascimento da borboleta, deixa suas asas tortas e ela não voará.

E é por isso que reafirmo: “Não acredito em espiritualidade soft!”*

 

https://www.inspiritus.com.br/nao-acredito-em-espiritualidade-soft

 

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