Abuso e Violência Espiritual
A primeira vez que me defrontei com o termo Abuso Espiritual foi em 2005 em um artigo de Boyd C. Purcell. Nesse artigo, o capelão definia o abuso espiritual como o ato de fazer alguém acreditar que seria punido por não ter atingido uma vida boa o suficiente aos olhos de Deus. Essa mentalidade de diferentes crenças religiosas está espalhada em nossa sociedade de forma as vezes sutil. Tão sutil que grande parte dos pacientes tem como necessidade receber o perdão de Deus antes de morrer. O “merecimento”, seja através da fé, das virtudes ou do pensamento positivo, está tão arraigado nas bases de nossa cultura que nem percebemos. Será que Deus precisa de nossa idolatria para nos conceder benesses? Seria esse Deus criador de todo o universo tão mesquinho quanto o próprio ser humano?
Desde aquela época ficou claro para mim o quanto certas pessoas poderiam utilizar a dinâmica psicológica das religiões em seu próprio beneficio. No entanto, sentia a espiritualidade como local seguro. Como a espiritualidade expressa a relação pessoal do indivíduo com o significado da vida, suas conexões e o sagrado sentia ela como mais imune a essas interferências. Estava errado...
As conexões e significados estão sujeitas ao longo do desenvolvimento humano a toda forma de crenças distorcidas e abusos. Não nascemos com um potencial espiritual que não passe pela cultura e pela nossa história. As formas de conexão* e o sentido de vida fazem parte indissociável da nossa infância, nossa família, nossa etnia, a natureza que nos rodea e pela percepção que ao final de tudo isso resta de nós mesmos. SOMUS seres conexão, mas para sobrevivermos a infância o vínculo com o Outro será sempre mais importante que o Si-Mesmo.
Passei a revisitar esse conceito de abuso espiritual...
Existem no mundo centenas de religiões, por que a sua seria a melhor? A diversidade de visões de mundo e cultura é o maior patrimônio da humanidade. A necessidade de oprimir, ofender, rechaçar outras religiões demonstra uma grande insegurança com relação a verdade, de tal modo que é necessário destruir valores diferentes para que não haja mais dúvidas. Demonstra também uma incapacidade empática de perceber o outro como pessoa. Todos seres humanos tem, em essência, as mesmas necessidades, sofrimentos e esperanças. Por que o rótulo de uma religião, etnia ou gênero afastaria alguém da condição de Homo Sapiens?
Nos dias de hoje estamos mais atentos a intolerância religiosa, mas existem formas sutis de intolerância. Na maior “boa intenção” vejo pessoas batendo de porta em porta para para falar de sua religião. Por que você tem o direito de bater na minha porta oferecendo a sua salvação? Pergunto-me qual seria a reação das pessoas se um pai de santo batesse a sua porta oferecendo axés? Curioso como tradições de base cristã não são questionadas a respeito de suas atitudes em nossa cultura. Religiosos visitam pacientes em hospitais sem consentimento dos mesmos, crucifixos existem em quartos de instituições e hospitais, etc.
O Proselitismo é outra forma de abuso espiritual. É a ação ou empenho de tentar converter uma ou várias pessoas em prol de determinada doutrina, ideologia ou religião. Estou sempre curioso para entender verdades alheias a minha, mas tentar me convencer que a sua verdade é absoluta me desagrada bastante. Vivemos numa realidade relativa e diversa. A própria natureza é exemplo disso! Quantas espécies, quanta diversidade, e é bem mais bonito assim.
O Proselitismo toma sua forma mais cruel quando ocorre com pessoas vulneráveis: crianças, idosos e doentes. As crianças recebem de seus pais a herança cultural-religiosa da família o que é natural. O abuso acontece quando a criança ou adolescente manifesta idéias e comportamentos não aceitos por aquela crença e é reprimida diante de uma suposta lei divina. Muitos idosos quando perdem sua independência se vêm forçados a aceitar valores diferentes dos seus, inclusive com limitação a cultos e convívio com pessoas da mesma tradição. Os doentes nos hospitais e nas casas sofrem todo tipo de proselitismo, até mesmo porque existe uma crença comum de que o estar doente acontece em função de quebra de leis divinas, carma ou ausência de fé. Familiares, voluntários e até equipe de saúde frequentemente tentam converter “na maior das boas intenções” os valores espirituais daquela pessoa. Insuflam nas pessoas a necessidade de merecimento com frases como: “Você precisa ter fé!”, “Precisa aceitar a vontade de Deus” ou “Temos que ter pensamento positivo.”
Saindo do campo das crenças religiosas e espirituais me defronto finalmente com a espiritualidade e sua relação pessoal com a busca de sentido para a Existência. O objetivo da jornada espiritual é o encontro da totalidade, o Self como diriam os Junguianos. No entanto a totalidade só é atingida através da conversa entre os pares de opostos. Não é possível aceitar uma totalidade que não olhe para aspectos sombrios de nós mesmos. Quando digo sombrio, me refiro àquelas coisas que geralmente escondemos do mundo e de nós mesmos. As coisas não aceitas, “feias”, “frágeis”, “imorais”, etc.
Quando criança somos culturalmente afastados desses aspectos em função de nossa necessidade de vínculo. Afinal, sem o vínculo com seus cuidadores as crianças não sobrevivem. Precisam assim adequarem-se a cultura familiar. Quando crescemos e podemos viver sem nossos cuidadores podemos nos lançar na verdadeira jornada espiritual. Toda jornada espiritual passa pelo confronto com tais aspectos e sua assimilação. Desse modo toda vez que alguém interfere no contato com tais aspectos fazendo brilhar apenas o lado luminoso da história está fazendo um abuso. Esse abuso é a indução ao bypass espiritual. O bypass acontece toda vez que, baseado em valores espirituais, deixamos de fazer contato com a dor, com nossas necessidades e demandas psicológicas, para saltar diretamente para nossa triunfante magnitude espiritual.
*Ver artigo: https://www.inspiritus.com.br/somus-formas-de-conexao