Não acredito em espiritualidade Soft
Quando falamos de espiritualidade, muitas coisas vêm à cabeça. Nos tempos modernos, muitas dessas percepções estão relacionadas a aspectos de bem-estar. Existe, nos dias de hoje, um enorme consumo ao redor do tema. Técnicas, práticas, autoajuda, tudo com o objetivo de se encontrar paz, felicidade, bem-estar, etc. Como se a tal “espiritualidade” fosse o topo de um estado de tranquilidade a ser atingido.
Muitos estudos científicos mostram benefícios de tais práticas e não tenho dúvidas do poder das mesmas. Estudos também demonstram que várias práticas dissociadas de qualquer entendimento ou significado tem efeitos magníficos no funcionamento cerebral e na fisiologia.
Mas o que é espiritualidade?
Muitas são as definições para um campo tão vasto. Todas reforçam ser uma dimensão pessoal. Muitas trazem de frente a conexão com a vida e/ou o transcendente, assim como seu sentido/significado. Eu, pessoalmente, uso o acrônimo SOMUS para expressar as diferentes formas de espiritualidade (Si Mesmo, Outro, Momento, Universo, Sagrado). Gostaria, no entanto, de aprofundar essa percepção voltando no tempo em busca de suas raízes.
Se retornarmos aos primórdios da humanidade, notaremos o nascimento da espiritualidade na relação com as forças naturais e, especialmente, com a morte. Certo dia, um ser humano percebeu que outro humano morria! Ele podia ver o corpo morto do outro e perceber que era diferente do seu. Aquele corpo inerte e frio deve ter impactado profundamente seu ser. Antes respirava, agora não. O ar foi embora, “o espírito = sopro” foi embora. O grande sofrimento da morte abriga agora um mistério e a possibilidade da existência no imaterial. O espírito não está lá; estaria em outro lugar? Uma crise existencial culmina na busca por uma conexão e um sentido que transcende a materialidade.
Uma das definições de espiritualidade diz que ela é uma qualidade do indivíduo cuja vida interior é orientada para Deus, o Sobrenatural ou o Sagrado. É encantador perceber que as pessoas com maior senso de conexão e sentido viveram em seu íntimo grandes sofrimentos: doenças, mortes, ruína, culpa, acidentes, pobreza, vícios, etc. O sofrimento parece ser o dinamizador da possibilidade de conexão e sentido com o imaterial. Como diria Rubem Alves: “Todos rezamos quando o amor se descobre impotente. Oração é isto: essa comunhão com o amor, sobre o vazio...”
Na dimensão espiritual do ser humano, essa capacidade de encontrar sentido e conexão mesmo diante do absurdo, traz uma possibilidade de enfrentamento da realidade sem precedentes. Como nosso irmão pré-histórico que enfrentou a doença e a morte identificando um universo invisível que vai além da materialidade, seguimos hoje nessa constante tentativa de dar sentido a nossa experiência terrena. E é por isso que não acredito em espiritualidade soft, aquela que olha apenas para o luminoso da vida e não reconhece suas dores e mazelas. Aquela que usa de práticas destituídas de sentido para amortecer a dor ou evitá-la. Posso ser mal compreendido nesse ponto e esclareço: tais práticas tem seu papel ao tornar a dor suportável para ser trabalhada, mas não podem ser o objetivo em si mesmo. A busca por conexão e por sentido é o objetivo da espiritualidade e isso se faz num território onde a desconexão e o absurdo estão presentes. Não há como encontrar sentido sem reconhecer o absurdo, nem se conectar sem reconhecer a desconexão. Os pares de opostos caminham sempre juntos.
Nos versos de um velho provérbio Taoísta:
“Se todos na Terra reconhecerem a beleza como bela,
dessa forma já se pressupõe a feiúra.
Se todos na Terra reconhecerem o bem como o bem,
desse modo já se pressupõe o mal.
Porque Ser e Não-ser geram-se mutuamente.
O fácil e o difícil se complementam.
O longo e o curto se definem um ao outro.
A voz e o som casam-se um com o outro.
O antes e o depois se seguem mutuamente.
"