Numinosidade, natureza e evolução
“Poderíamos ter aprendido há muito tempo com o exemplo das sociedades primitivas o que significa a perda do numinoso: elas perdem sua razão de ser, o sentido de sua vida,
sua organização social e então, se dissolvem e decaem.“
Carl G. Jung
Vivemos por centenas de milhares de anos imersos na natureza da biosfera e na natureza de nossa mente instintiva. Aos poucos o Homo Sapiens desenvolveu sua cognição e começou a pensar, analisar e interpretar o seu universo exterior e interior. Desse conflito de forças instintivas e racionais surgiu a linguagem simbólica e o ser humano começou a atribuir significado e sentido a seres, coisas e fatos. Muitos desses símbolos fazem interface entre aspectos racionais e irracionais, ligam expressões cognitivas com sentimentos e emoções, conscientes ou não. Um símbolo, e me arrisco a dizer que tudo que percebemos são símbolos, pode trazer atrelado a ele inúmeras memórias, emoções e sentimentos. Assim, o significado de cada coisa no mundo será individual. Por isso é muito difícil realmente entender o que uma pessoa percebe ou sente diante da realidade subjetiva ou objetiva. No entanto, alguns símbolos podem ter significados semelhantes para um povo, um grupo e até mesmo para a humanidade.
Apesar de nosso desenvolvimento cognitivo, nossos aspectos arcaicos continuam habitando nossa mente. São centenas de milhares de anos de evolução para lidar com as forças da natureza e as nossas próprias forças instintivas vs apenas milhares de anos de linguagem e raciocínio. Nossa cognição permitiu o controle parcial de vários aspectos de nossa vida. Mas quanto mais controlamos a vida, mais nos afastamos da possibilidade da entrega. E é no campo da entrega, da confiança que habita o Numinoso.
O Numinoso, também chamado de sagrado por alguns autores, é a palavra que denomina a dimensão profunda de conexão com o mistério: o mysterium tremendum. O numinoso traz consigo aquela percepção súbita de encantamento, beleza, reverência e mistério que arrebata a mente cotidiana e a toma para si. E o mistério só habita onde a razão não entra. Quanto mais controlamos a vida, quanto mais entendemos o mundo natural, mais o mistério fica renegado a outro lugar. De modo que chegamos ao ponto de não mais percebê-lo. Será?
A natureza sempre foi grande fonte da numinosidade para o ser humano. O númen é aquela partícula celestial que permaneceu na terra quando no início dos tempos céu e terra se separaram para criar o tempo. Diante da natureza podemos nos encantar com sua beleza, sua força, sua majestade e nos colocar no devido lugar. Lá fora há um mistério, aqui dentro há um mistério que chamamos Vida.
A retirada do numinoso da vida diária trouxe um prejuízo para nossas vidas. Quando o mistério caminhava entre nós a vida podia ter mais brilho. O sentido para viver tinha permissão para habitar em todos os seres e em toda existência. Tudo era símbolo que conectava a mente consciente e a inconsciente.
Hoje a ausência de conexão como numinoso presente na natureza expõe a psique a transferências desses conteúdos arquetípicos para comportamentos perigosos. Exaltação política, vícios, fanatismo religioso, fé científica, consumismo, se tornam os novos númens. Divindades celestiais distorcidas, deslocadas de sua verdadeira morada.